Lições da greve dos caminhoneiros

O recente movimento de paralisação dos caminhoneiros, iniciado no dia 21 e, aparentemente, encerrado ontem, 30/05/2018, revelou algumas debilidades estruturais do país, e a dependência em que nos encontramos de um meio de transporte baseado exclusivamente em combustíveis, principalmente a gasolina. Escrevo para adquirir clareza a respeito desses assuntos, e para que isto sirva para embasar reflexões futuras. Dividirei a exposição em alguns pontos:

  1. A dependência do transporte rodoviário: o primeiro e mais evidente problema, é a dependência em que nos encontramos do transporte rodoviário, principalmente daquele baseado em combustíveis fósseis. A falta de investimento por parte do governo, há décadas – possivelmente, desde a era JK, quando o país optou pela matriz de transporte baseado na gasolina –, com a consequente desativação da malha ferroviária então existente. O governo acaba de anunciar a finalização de um Plano Nacional de Logística, em preparo há dois anos e, coincidentemente, pronto exatamente agora (Estado de São Paulo, 31/05/2018, página A4) pelo qual se pretende “ampliar em 100% a participação ferroviária até 2025”. Já não era sem tempo! O transporte de cargas e de passageiros pode ser feito de maneira mais eficiente, e com menor custo econômico. Também se trata de um meio de transporte mais seguro. O número de mortos em acidentes automobilísticos equivale a uma “guerra civil”, como mostrou Luís Mir em livro homônimo (Guerra civil – Estado e trauma. São Paulo: Geração Editorial, 2004). Também haveria um benefício ecológico evidente, com a utilização de meio de transporte menos poluente. O mesmo se aplica ao transporte fluvial, pouco utilizado no Brasil.
  2. A dependência do automóvel: é conhecido o problema, e a greve dos caminhoneiros só evidenciou essa questão, a saber, a de que dependemos do transporte motorizado, particularmente do automóvel, para realizar a maioria de nossas atividades no dia a dia. Tinham razão os ambientalistas, que já apontavam esse como um dos problemas relacionados à poluição. Precisamos mudar nosso modo de vida. Para isso, é preciso fortalecer as economias locais, e aproximar o lugar de residência do lugar de trabalho, possibilitando a utilização de meios de transportes alternativos, como a bicicleta, patins, skate, e mesmo a caminhada. Isto não parece mais delírio de utopistas ecológicos. Deve-se ressaltar que a utilização do meio de transporte individual, o carro, é em muitos casos necessária devido à precariedade, ineficiência e/ou insuficiência dos meios de transporte públicos oferecidos.
  3. Centralização da distribuição de bens, serviços e alimentos: o movimento grevista também deixou claro que há algo errado na forma de distribuição das mercadorias e dos serviços. Ela é extremamente centralizada: ocorre com frequência o absurdo de as mercadorias comestíveis serem enviadas para um centro de distribuição, como a CEASA, em São Paulo, para depois voltarem para seus locais de origem, gerando desperdício e aumento do custo, sem falar da poluição associada a esse transporte. É preciso voltar a incentivar a produção e distribuição locais. Isto também fortaleceria os produtores locais e diminuiria o custo para os consumidores, tendo reflexos ainda no aumento da qualidade dos alimentos oferecidos. O mesmo raciocínio se aplica ao setor de serviços. O treinamento e a instalação de postos de serviço especializado nas áreas de telefonia, informática, mecânica e outros ajudaria a desenvolver as economias locais e diminuir a dependência dos grandes centros urbanos, colaborando também para a diminuição do inchaço desses polos e, com isso, mais uma vez, contribuindo para a diminuição da poluição.
  4. Carga tributária elevada: outro aspecto que ficou evidenciado ao longo da cobertura jornalística do movimento dos caminhoneiros e a crise que veio à tona com ele, é a excessiva carga tributária que incide sobre a maioria de nossos produtos, e particularmente sobre os combustíveis. Entre o preço pelo qual a gasolina é vendida na refinaria (hoje cerca de R$ 1,90) e o preço praticado nos postos (em média, R$4,50, antes da greve), o aumento desse valor para o consumidor final se explica pela excessiva carga tributária praticada sobre esse produto, em torno de 40% do valor original. Pagamos “impostos em cascata”: em tudo o que consumimos pagamos vários impostos acumulados. Com a descentralização econômica defendida neste artigo, essa carga tributária seria diminuída, contribuindo para a elevação da renda média do brasileiro e para a geração de empregos. Hoje, os impostos que pagamos servem em grande parte para sustentar a máquina administrativa que cobra esses impostos! Precisamos de fiscais para controlar todo esse fluxo, que vai dos Municípios à União, passando pelos Estados. Volta uma parcela ínfima desse valor pago. Além disso, há uma perda enorme que ocorre nessa movimentação financeira, sem falar da corrupção envolvida, facilitada pela extensão dessa cadeia econômica.

Não sou economista, apenas filósofo – no sentido amplo de intelectual – , mas espero contribuir com estas reflexões para que alguém mais competente se anime a sistematizar o que aqui se colocou como esboço.

Anomia social, novamente

Há algum tempo postei aqui um texto sobre anomia social (https://algumafilosofia.wordpress.com/2014/05/01/anomia-social/). Volto ao tema, pois o comportamento de muitos indivíduos na sociedade – ignoro, agora, as estatísticas – revela a ausência de valores básicos, como o respeito à vida e o princípio da não-agressão, especialmente no que se refere aos mais frágeis. Por que digo isso?

Como espectador ocasional, destaco três cenas de agressões mostradas pelos jornais da TV. Minha intenção não é chocar ninguém, mas discutir esses casos como indicativos de uma patologia social mais abrangente.

Cena 1: a câmera mostra um carro parando em uma garagem e, logo, depois, um outro encostando a seu lado. Somos informados, pela jornalista que narra a notícia que se trata da sequência de uma briga de trânsito. Do segundo carro, desce um sujeito grandalhão, de chinelos, que dá a volta e atinge o idoso por trás, com uma pancada bastante violenta. O idoso cai no chão e permanece deitado. A senhora que acompanha o senhor atingido parte para cima do agressor, que a ignora, volta a seu veículo e vai embora. O atacante, da cidade de Joinville – SC, foi identificado e deve responder a processo.

Cena 2: Um funcionário do metrô de São Paulo atinge com uma bofetada uma mulher com quem discutia e a quem tinha retirado do vagão após esta se recusar a levantar do chão, onde estava sentada. O homem é contido pelos colegas e outros presentes. Informa-se que o funcionário foi afastado de suas funções.

Cena 3: Ao atravessar uma avenida movimentada em Campinas – SP, um idoso de 90 anos é abordado por um homem que segura o seu braço e anuncia o assalto: caso não atenda a suas exigências, o homem ameaça jogá-lo no meio dos carros. O idoso alega estar sem dinheiro, leva o assaltante até o seu apartamento e lhe paga em cheque! Este caso é verídico, pois ocorreu com pessoa próxima a mim.

Analisemos agora estas situações. O que há de comum entre elas? Trata-se, nos três casos, de situações de violência na qual uma das partes é claramente mais forte do que a outra. O crime é cometido sem possibilidade de defesa, e por motivo torpe ou banal.

Parece-me que falta, nos três casos, o chamado “contensor social”, que é aquele mecanismo que impede que a maioria de nós saia agredindo ou matando aos outros no dia a dia. Pode-se dizer que esse “contensor” funciona razoavelmente, uma vez que não nos matamos habitualmente nas ruas. Esta violência é uma exceção. Mesmo assim, é algo que tem aumentado em volume e intensidade nos últimos anos.

A intenção deste artigo é justamente discutir essa anomalia e refletir sobre as maneiras de se evitar que ela se intensifique. Não parece provável que o motivo desta falta de valores seja a educação básica. Parece-me, e aqui assumo uma postura que pode ser considerada conservadora, que faltam valores que usualmente são transmitidos, ou deveriam ser transmitidos, no meio familiar. Trata-se do tipo de conselho que um pai, ou uma mãe, deve dar a seus filhos: “Nunca bata em mulher”; “Respeite os mais velhos”; “Proteja os mais fracos”, e assim por diante.

Pergunto-me se, por trás desse fenômeno, que continuo chamando de “anomia social”, não está uma crise de valores . Não me refiro aqui, necessariamente à mítica família mononuclear, mas a qualquer núcleo familiar estruturado: a identidade sexual ou de gênero dos participantes da família não importa. O que importa é que haja esta convivência entre adultos responsáveis e crianças em fase de formação. Que haja um acompanhamento dos pais, no sentido psicológico do termo (parents, parenthood), que devem perguntar como foi o dia da criança, que problemas ela enfrentou, o que fez durante o dia etc. É nesses momentos que o adulto pode aconselhar a criança, e ajudar a formar valores que, de outra forma, não surgirão. Uma das causas da psicopatia é a ausência desse vínculo parental. Precisamos decidir se queremos criar cidadãos ou, pelo contrário, deixar que a sociedade se torne, cada vez mais, louca.

Feliz Natal e um melhor 2018 para todos!

Meu corrupto favorito

As próximas eleições representarão a escolha do corrupto favorito. Os argumentos racionais, cada vez menos, têm lugar no debate político. Não adiantam razões para se votar ou não votar em alguém. As escolhas são feitas de antemão, de maneira emocional, e não há nada ou ninguém que faça o eleitor mudar de ideia. Isto também vale para quem vota nulo ou branco.

Outro dia, uma pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que visava medir o grau de satisfação com o governo perguntava, por exemplo, o que o entrevistado achava da política em relação à taxa de juros. A maioria dizia desaprovar (84%) (Estado de São Paulo, 01/08/2017, “O estado de espírito da população”, p. A3). Mesmo estando ainda alta (9,25%), houve significativa redução em relação ao que vinha sendo adotado. O mesmo se aplica em relação ao combate à inflação, projetada este ano para 3,6%, e desaprovada por 77% da população.

Não se trata de defender este governo, ou qualquer outro, mas de questionar: 1) a metodologia da pesquisa, que coloca questões que, na verdade, não podem ser respondidas; 2) o discernimento da população, a qual, sem informação concreta, é contra “tudo o que está aí”. Seria uma versão negativa do famoso mote anarquista: “Hay gobierno, soy contra”. Trata-se de um voto não qualificado, que não se orienta por meio de informações e argumentos racionais.

A preocupação, aqui manifestada, se dá em relação ao tipo de democracia que temos. Trata-se de uma democracia não qualificada, feita sem base em informações e com motivações apoiadas unicamente em emoções e sentimentos, não em razões. É preciso qualificar nossa democracia, e para tanto, é preciso insistir na formação das novas gerações, por meio do ensino em seus diversos níveis – básico, médio, técnico e superior.

Assistiu-se a tristes espetáculos, tanto no processo de Impeachment da Presidente afastada Dilma Rousseff, quanto na rejeição da denúncia por parte da Câmara, em 02/08/2017. O espetáculo a que me refiro é o desfile de discursos de pessoas com claras deficiências de formação, refletida nos pobres discursos que proferiram então como agora. Dá vergonha, não tanto pela posição tomada naquele primeiro caso, como neste último, mas por mostrar que chegam ao Congresso os piores alunos. Foram os alunos que não foram reprovados, quando isto era possível, e que agora nos representam. Nossa democracia precisa ser qualificada, para dizê-lo uma última vez, e para isso é preciso investir na educação, agora como sempre.

Considerações sobre o Impeachment

Não é o momento mais de ocultarmos nossas posições. A decisão do Impeachment foi tomada – a menos que o STF anule o julgamento, devido ao fatiamento da votação, o que parece improvável – e não é o caso de ficar em cima do muro.

Em primeiro lugar, não considero que houve um “golpe”, como ainda querem fazer crer os partidários da Presidente cassada, ou os adversários do Presidente empossado – posições que não são necessariamente idênticas. Dois dos três poderes da República, a saber, o Legislativo e o Judiciário, decidiram que a Presidente devia ser afastada. Houve amplo processo de defesa e todos os ritos legais foram cumpridos.

Não há dúvida de que se tratou de um processo principalmente político, sobre uma base jurídica frágil, mas real. Se não houvesse vontade política, isto não seria suficiente para afastar a Presidente. Recordo, nesse sentido, que as denúncias contra Collor já eram conhecidas um ano antes do início do processo de Impeachment. O que mudou foi a vontade política, principalmente depois do confisco da poupança.

No presente caso, a Presidente foi afastada por um misto de atos ilegais com ineficiência. Pode-se perdoar os primeiros sem a segunda, mas não ambos. E parece que este foi o caso. Foi isto, aliado à inabilidade política da Presidente, que conduziu a seu afastamento.

Pode-se não gostar do resultado, mas não há o que reprovar no processo, que percorreu todas as etapas previstas na constituição, teve o aval e o acompanhamento do judiciário, e representou a vontade dos eleitores, pois os deputados e senadores que votaram a favor do Impeachment seguiam sua base eleitoral ao darem seu voto, e não o fariam se não fosse assim.

A economia ia de mal a pior. Estamos ainda em situação crítica, mas com um grau de confiança maior, do ponto de vista da eficiência econômica, e isto é uma diferença fundamental. Insistir no governo de Dilma unicamente porque ela foi eleita, seria irresponsável com o país, que está à beira do colapso, com mais de 12 milhões de desempregados, inflação alta, depressão etc. É este, reafirmo, o principal motivo para a deposição de Dilma. O país não podia esperar até 2018, era preciso tentar algo antes, e o governo de Temer, ainda que não esteja isento de algumas das mesmas acusações do governo anterior, sabidamente representa um grau maio de confiança do ponto de vista da segurança econômica e jurídica, e isto é essencial para captar investimentos e retomar o crescimento.

O governo de Temer não é uma panaceia, e será apenas um governo de transição. Em direção a que, não sabemos. Também está claro que necessitamos de uma renovação em todos os campos da vida nacional, a começar pela política, mas também no campo intelectual, cultural, artístico etc. O Brasil precisa se reinventar.

A crise atual é inegável, e o Impeachment não é motivo para comemorar, porque tempos difíceis ainda nos aguardam. Mas é um começo. A Operação Lava-Jato tem sido em grande parte responsável por essa revolução na história do país, revolução que só se completará,para dizê-lo mais uma vez, com o surgimento de uma nova geração, menos corrupta e mais comprometida com o futuro do país.

O último erro

Armando Nogueira disse certa vez que “às vezes, zero a zero é nota”. Não foi o caso do jogo de ontem entre Argentina e Chile, pela final da Copa América. Ambos os times lutaram bravamente durante o tempo regulamentar e os 30 minutos da prorrogação, quando partiram para a disputa de pênaltis. Venceu quem cometeu o penúltimo erro.

Aos 28 minutos do primeiro tempo, foi expulso Dias, do Chile, após levar o segundo cartão amarelo. O Chile aguentou a pressão e se reestruturou. Pouco tempo depois, jogador da Argentina também foi expulso. Ambas as equipes terminaram o primeiro tempo com dez jogadores cada.

No segundo tempo, os ataques se sucederam, de lado a lado, com leve predominância da Argentina. Defesas espetaculares dos goleiros mantiveram o resultado, que de modo algum podia ser considerado nota pelo desempenho das equipes. Messi driblava, não fugia do confronto, tentando a lateral do campo, o meio, lançamento, sempre esbarrando na defesa obstinada dos chilenos.

Ao final do segundo tempo, as equipes desabaram no gramado, e tiveram seções de massagem antes de prosseguir para a prorrogação. Na prorrogação, contrariamente ao que acontece com frequência, quando as equipes levam o jogo em banho-maria, até os pênaltis, ambas atacaram, mesmo ao risco de levar gols.

Pênaltis. Na última final da Copa América, na qual as mesmas equipes se enfrentaram, o Chile havia vencido nos pênaltis por 4 a 1. A Argentina, como ressaltavam os comentadores, não vencia desde 1993.

Primeiro a chutar, o melhor do Chile, Arturo Vidal, perde o pênalti, que é defendido pelo goleiro. Messi é também o primeiro da Argentina. Corre para a bola, o goleiro vai no canto e… a bola vai para fora! Isolou, como se diz na gíria.

Agora, a cobrança alternada segue, e o goleiro Bravo – jogador do Barcelona, colega de Messi – defende a última cobrança. O jogador chileno não perde a oportunidade. O Chile é bicampeão! Grande jogo, com estádio lotado, bom futebol. Creio que o Brasil vai demorar para recuperar a supremacia que tinha até algum tempo atrás. É preciso trabalhar muito para superar o que se viu em campo na noite de 26 de junho.

Luiz Paulo Rouanet

Renovação política

 

Esperei para me manifestar sobre os recentes acontecimentos do país, coincidentes com o final do primeiro mandato da Presidente Dilma e o atual mandato, até possuir uma visão mais clara do conjunto da situação. Se estivermos demasiado mergulhados nos eventos, não disporemos do distanciamento necessário para uma análise equilibrada.

Ainda não se sabe qual o desfecho que terá este governo, se ele chegará até o fim. Os indícios parecem apontar no sentido contrário. Mesmo que ele se aguente, sofreu até agora tanto desgaste, que não apresenta condições de realizar nada, de aprovar qualquer medida. No restante do mandato, se houver, o governo estará ocupado em salvar a si próprio. Na prática, o governo acabou.

Feita esta avaliação inicial, o que se vê dos desdobramentos da Operação Lava-Jato, e em particular da última fase da operação, denominada “Xepa”, é que a corrupção, capitaneada pela Odebrecht, atinge igualmente a diversos partidos, tanto da oposição quanto da situação. Ao final do processo – e quer-se acreditar que um dia ele terá fim –, será preciso proceder a uma renovação geral de quadros políticos e de partidos. Entre os partidos citados, estão as sete maiores siglas: PSDB, PMDB, PT, DEM, PPS. PDT e PTB (O Estado de São Paulo, 26/3/2016, p. A7). Ainda é preciso apurar a legalidade ou não desses repasses. Na mesma página, alguns dos partidos respondem às acusações informando que os valores foram declarados.

Embora não seja de se esperar grandes renovação no âmbito das eleições municipais, estas deverão ocorrer nas eleições federais, em 2018. A supor-se que seja mantido o Presidencialismo – e seria saudável discutir uma opção, como um regime semipresidencialista, por exemplo, nos moldes da França –, a maior mudança deve ocorrer nos quadros do Parlamento, especialmente na Câmara.

O que se deve exigir, do judiciário e da imprensa, é imparcialidade. Embora não seja de se esperar uma  neutralidade weberiana , alguns dos maiores jornais e revistas do país têm exagerado na omissão de informações que contrariem suas posições políticas. Que a operação não poupe a ninguém, mesmo que o custo disso seja esvaziar o quadro político, o que, no balanço final, não seria de todo ruim. Desde o final da ditadura, em 1984, temos ainda basicamente os mesmos quadros políticos e as mesmas forças em confronto.

Por outro lado, existe o risco real de que esse esvaziamento dos quadros políticos atuais dê lugar a candidaturas populistas e/ou oportunistas, à direita e à esquerda do espectro político. Isto também não é desejável. É preciso ficar atento a um discurso “antipolítica”, pois não existe o apolítico. Como se sabe não tomar uma posição já é tomar uma posição, e candidaturas do tipo “contra tudo o que está aí” são extremamente perigosas, pois geralmente atendem a interesses personalistas, quando não de grupos ocultos.

O melhor que posso fazer, por enquanto, é tentar me manter distante das posições ou facções envolvidas, embora isto não seja fácil. Renunciar a um julgamento feito na hora, sob o calor das paixões e sem todas as informações ainda disponíveis, é o desafio. Omitir-se não é tampouco uma opção. A tarefa do analista político se situa entre esses dois extremos.

 

 

Tempos interessantes

Ariano Suassuna dizia que há dois tipos de viagem, a tediosa e a mortal; particularmente, ele dizia preferir a primeira. Creio que a frase se aplica aos tempos que estamos vivendo, na política. A questão, é que não podemos nos afastar, dar um passo para trás e assistir. Estamos envolvidos na crise, e nosso futuro depende do que acontecer nos próximos meses.

Para resumir, temos uma Presidente – recuso-me a chamá-la por “Presidenta”, pois Caesar non est supra gramáticos – sem autoridade, confusa, duplamente ameaçada de Impeachment, seja pelas chamadas “pedaladas fiscais”, seja pelo financiamento da campanha, que pode ter recebido verbas provenientes de corrupção, o que ainda está sendo apurado. Temos, em segundo lugar, um vice-Presidente, Michel Temer, seguramente com mais autoridade do que Dilma, mas que não tem, por enquanto legitimidade, na medida em que não é o Presidente em exercício. Corre também o risco de ser impedido, caso a chapa seja impugnada devido ao financiamento da campanha. No entanto, está tentando se colocar como “salvador da pátria”, como uma figura de consenso, capaz de serenar os ânimos. Até certo ponto, isso é verdade, a não ser pelo fato de que também está envolvido na crise.

Os partidos aliados estão começando a abandonar o navio, como fizeram na última semana o PDT e o PTB. Quanto à oposição, está fazendo um jogo de espera, que é sempre perigoso, pois corre o risco de perder o momento para tomar a iniciativa. Há dez anos, por ocasião do Mensalão, hesitaram em tomar o curso do Impeachment de Lula, acreditando que as urnas se encarregariam de afastá-lo. Foi um grande erro, que pode se repetir agora. O PSDB tem dado sinais contraditórios em relação ao processo de Impeachment, não o apoia nem rejeita explicitamente.

A Presidente Dilma, tentando angariar algum apoio, convidou os senadores para um jantar. Algum espirituoso poderia repetir a frase da atriz Mae West, quando convidada para um jantar na Casa Branca: “It’s an awful long way to go for just one meal” (“É um caminho pavorosamente longa para fazer apenas para uma refeição”). No caso de Brasília, isso parece ainda mais ser o caso. Além disso, não creio que um jantar seja suficiente para resolver o problema.

São tempos interessantes, mas só o tempo dirá quem tem razão. Enquanto estamos mergulhados nos acontecimentos, não temos como prever quem realmente é capaz de interpretar os fatos acertadamente, a fim de melhor se aproveitar deles, seja para benefício próprio, seja para benefício do país. Quem souber fazer isso melhor, verá. E viverá.

A banalidade da política

É tão grande a quantidade, e tão duvidosa a qualidade dos cargos políticos loteados em Brasília, que somos levados a algumas considerações. O cargo de ministro, por exemplo, tornou-se tão banal que, em alguma escola de Brasília, não será incomum a professora perguntar aos alunos: qual a profissão de seus pais? E vários provavelmente responderão: ministro ou ministra. Este mesmo que escreve é filho de ex-ministro. E daqui a pouco se começará também a mentir a respeito, por vergonha, como na piada do Joãozinho. Perde-se a solenidade e a importância do cargo.
Mas esta é uma consideração secundária face à profusão de ministérios e siglas, muitas vezes concorrentes, quando não conflitantes. Ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, comandado por notória ruralista, contrapõe-se o Ministério do Desenvolvimento Agrário, comandado por Patrus Ananias, bem conhecido por sua gestão à frente da prefeitura em Belo Horizonte e por seu grande envolvimento em causas sociais; foi um dos mentores do Programa Fome Zero, entre outros. É inevitável que ambos batam cabeça, como já ocorreu neste início de ano. Não seria melhor haver apenas um ministério, o da Agricultura, com um titular igualmente aberto às reinvindicações do agronegócio e dos pequenos produtores e movimentos sociais? É preciso lembrar que há ainda o Ministério da Pesca e Aquicultura, sob comando de Helder Barbalho.
Outro exemplo é o do Ministério das Cidades, sob comando de Gilberto Kassab, do Ministério da Integração Nacional, sob comando de Gilberto Occhi (?), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, sob liderança de Tereza Campello. Pergunto-me se estes dois últimos não poderiam estar integrados ao primeiro, na forma de secretarias.
O último exemplo é o da multiplicidade de siglas que tratam da questão econômica, como o Ministério da Fazenda (Joaquim Levy), Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Armando Monteiro), Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (Nelson Barbosa). Acredito que a tarefa mais difícil seja deste último, pois, como planejar e gerir essa mixórdia de ministérios, secretarias e outros órgãos?
Em resumo, fala mais alto, neste “presidencialismo de coalizão”, a distribuição de cargos públicos. O interesse em participar do governo, de pegar sua parte do bolo, é superior a qualquer interesse legítimo pelo bem da coisa pública. As poucas “almas puras” que efetivamente desejem fazer algo pelo país são necessariamente mergulhadas nesse imbróglio administrativo que supera a capacidade e as intenções que possam ter originalmente. Não se trata, somente, de corrupção ou incompetência pessoal, mas de uma falha sistêmica de grandes proporções.
Para mudar essa situação, pela via democrática, a única aceitável, é preciso fazer uma reforma constitucional e, por essa vida, uma reforma administrativa e política. O número e o nome dos ministérios, em primeiro lugar, devem ser definidos pela constituição, em número não superior, digamos, a 12 – atualmente, são 24, sem contar as secretarias especiais. Em segundo lugar, o número de legendas partidárias também deve ser limitado pela constituição, ou então, os critérios para criação de novos partidos devem ser tornados ainda mais rígidos dos que hoje existem – a chamada “cláusula de barreira”.
Não há nenhuma solução mágica, nenhuma panaceia. O caminho é político, mas deve ser buscado, pois a atual situação é diretamente responsável pela estagnação econômica que o país atravessa, apesar de dispor de boas condições, comparado a outros países mais pobres em recursos naturais e humanos. Como disse também Michael Walzer, trata-se de um processo de tentativa e erro. Já abusamos do direito de errar. Agora, é preciso começar a acertar.

O tempo como principal mercadoria do capitalismo

O tempo é o bem mais precioso de que dispomos. É este bem que determina nossa vida, quem somos, como vamos desenvolver essa vida, com quem nos relacionamos, qual a qualidade de nossa existência. É a administração desse bem que nos define como pessoas. É esse bem que é cobiçado pelo capitalismo, ou como quer que se chame o sistema no qual se insere, hoje, a maior parte da humanidade.
Quando crianças, este tempo nos pertence, até certo ponto. Vivemos, por assim dizer, no presente. Apreciamos cada momento: encantamo-nos com as formigas, com as borboletas, com os pássaros, brincamos com cachorros, gatos, pulamos no rio, no mar, na piscina. Não nos sentimos culpados por “desperdiçar” nosso tempo.
Será que é mesmo um desperdício? Ou será que o desperdício é aquele que tempo que gastamos, durante a maior parte de nossa vida, fazendo algo que não nos agrada, ou cuja exigência não partiu de nós mesmos? A alienação consiste, propriamente, na perda do controle desse tempo. Ele não mais nos pertence, mas pertence ao mundo. Passamos grande parte de nossa vida “ativa” realizando tarefas que nos são impostas de fora. Trabalhamos, em geral, para sustentar gastos que não teríamos se não tivéssemos de trabalhar. Além disso, o capitalismo, que consiste na somatória dessas vontades alienadas, procura inserir novas “necessidades”, aumentando assim a dependência que temos desse trabalho.
É claro, é preciso viver, é preciso comer, morar, locomover-se. O difícil é distinguir as necessidades que são realmente essenciais daquelas que são impostas pelo capital, e que são usualmente absolutamente superficiais e desnecessárias. Há a necessidade, por exemplo, de se atualizar, de buscar informações para entender o mundo em que se vive. Esta, eu qualificaria de necessidade essencial, ao lado das primeiras citadas neste parágrafo. Sem elas, por exemplo, não seria possível escrever este texto. Obviamente, não é uma necessidade que se supre de uma hora para a outra, mas leva, muitas vezes, uma vida para se construir. Já se disse (Aristóteles) que a filosofia necessita do ócio. Trata-se deste ócio que permite um distanciamento do tempo alienado, que permite a re-flexão. É preciso, como já sabiam os gregos, conhecer-se a si mesmo, voltar-se para dentro de si para reencontrar os elementos que são realmente essenciais para o bem viver.
O bem viver, este, afinal, o objetivo da vida. Assim o consideraram alguns filósofos que foram também sábios, e que não foram tantos assim: Sócrates, Epicuro, Agostinho. Talvez se possa pensar em alguns outros, mas estes são os prógonos. Os demais, Platão e Aristóteles incluídos, são epígonos. O que não retira sua importância, obviamente, pois era preciso compreender o que aqueles pioneiros intuíram. Porém, a mensagem essencial era bem mais simples: é preciso buscar a felicidade. Para isso, é preciso ter controle sobre o próprio tempo. E é isto que o atual sistema no qual vivemos procura, constantemente, retirar-nos.
Recuperemos o tempo. Para fazer isso, precisamos nos desligar de tudo aquilo que não seja realmente essencial, que seja imposto, que seja necessidade artificial. O objetivo primário é atender às necessidades básicas de alimentação e moradia. Em seguida, vêm as necessidades com vestuário, educação, cultura, saúde. Quanto ao resto, devemos nos perguntar: é realmente importante? Vale a pena “gastar” o meu tempo com isso? Ou representa, justamente, a alienação daquele tempo que nos é essencial para bem viver?

Considerações sobre a conjuntura política pós-eleições

Estas considerações foram apresentadas durante debate ocorrido no XVI Encontro Nacional da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), no dia 28/10/2014.
Em primeiro lugar, gostaria de considerar que, independentemente do resultado das últimas eleições presidenciais no Brasil, o país deu mostras, mais uma vez, de maturidade democrática. Mais uma vez porque, desde que a democracia foi reinstaurada, de maneira inicialmente incompleta, com a eleição indireta de Tancredo Neves e, após sua morte antes de tomar posse, a efetivação no cargo de seu vice, José Sarney, líder durante muito tempo da Arena, o partido governista durante a ditadura, passando pela eleição direta do primeiro presidente civil após o golpe – Fernando Collor de Mello – e seu impeachment, com a posse de seu vice, Itamar Franco, tudo isso se deu dentro da ordem legal e democrática. O país tem demonstrado, assim, nos últimos 30 anos, firme compromisso com a democracia.
Em suma, minha posição é que as últimas eleições, de outubro deste ano, demonstraram esse compromisso da nação, como um todo, com a manutenção das regras do jogo democrático. É verdade que houve exaltação, de parte a parte dos militantes ou simpatizantes dos dois principais partidos que chegaram ao segundo turno.
Este momento é de passar por cima das diferenças, numa espécie de “overlapping consensus” (“consenso por sobreposição”), na expressão de John Rawls. É hora de olhar propositivamente para o que deve ser feito.
Isto não significa que governo e oposição trabalharão juntos, de mãos dadas, como deu a entender Marina Silva em determinado momento da campanha, no primeiro turno. Significa que, cada um em seu papel, oposição e governo procurarão enfrentar os problemas que realmente existem: pequeno ou quase nulo crescimento econômico do país – o pior entre os BRICS -, a inflação, ainda pequena, mas preocupante, o déficit do balanço comercial, o superendividamento de parcela expressiva da população, leve aumento do desemprego, principalmente entre jovens, para citar apenas alguns pontos.
Por seu lado, a oposição deve focar nesses pontos, de maneira específica, clara, articulada, e cobrar o governo para que repense seu modelo econômico de modo a fazer face a esses problemas. E exigir a apuração das denúncias de corrupção, especialmente envolvendo a Petrobrás. Não se pode perder esse patrimônio: a Petrobrás, em 2013, era a companhia mais endividada do mundo, considerando seu faturamento. É preciso recuperá-la.
Por outro lado, o governo deve rever sua estratégia de crescimento, ainda que acoplada a seus propalados – e efetivos, também – objetivos sociais, a fim de gerar um “desenvolvimento sustentável”, não só do ponto de vista ambiental – grande ausente do discurso dos dois principais candidatos que chegaram ao segundo turno, mas central na plataforma da candidata derrotada Marina Silva -, como também social. É preciso atender à dupla necessidade de diminuição da pobreza – neste ponto, o país avançou bastante; a meta, agora, é combater a pobreza moderada – e um desenvolvimento que leve em conta a vida das futuras gerações, e não me refiro apenas à espécie humana, mas de todas as espécies com as quais convivemos.
Por fim, não se trata de propor panaceias, mas de se partir da realidade visando ampliar e consolidar conquistas, que foram muitas, aplicando o que John Rawls chamava de “realismo utópico”: trata-se de estender as condições do realisticamente possível.